De
quando em vez, pelo jornal Gazeta
Diário de Foz do Iguaçu, somos surpreendidos no "espaço
cult",
com textos que calam fundo. Na edição do
último fim de semana de Março, compareceu
Gabriel Chalita com a reflexão intitulada "Não
sou dono do amanhã", a qual pode nos
preparar para situações que preferiríamos
não ter de viver.
Minha mulher tem câncer. Um câncer que não tem cura.
O
diagnóstico foi o pior possível: Pouco tempo de vida!
Quando soubemos, olhamo-nos e
ficamos algum tempo em silêncio.
São quase 40 anos de vida
em comum. Nos nossos silêncios, filmes nos percorreram. Sei, pelo tempo que
estamos juntos, o que ela pensou. Sabe ela o que eu pensei.
Os médicos de hoje são pouco
econômicos em tergiversações. Vão direto. Não sei decidir se é bom ou ruim.
Depois do silêncio, tentei
algum dizer.
Lembrei-me de tantos que se curam. A medicina evoluiu, e sei de
muitos que enfrentaram cirurgias ou sessões de quimio e de radioterapia. E
ficaram curados. E ganharam outro significado no viver.
O médico não deu margens às
minhas ilusões. Disse logo que não era o caso dela.
Permaneceu ela em silêncio.
Saímos daquele lugar e fomos para casa. Olhávamo-nos. Ela andou pelos cantos
que guardam nossas memórias e depois resolveu cozinhar. Fiquei com ela na
cozinha. Ela fez comentários sobre a massa, o ponto do cozimento, o cortar
da cebola e do tomate, o tempero.
Durante o almoço, eu disse que
deveríamos ir a outro médico. Sempre é bom ter outras opiniões.
Ela consentiu rapidamente e
comentou sobre o vinho que estávamos bebendo. Sobre o prazer de estarmos
ali.
Olhou-me como nos tempos de
juventude. Olhou-me com alguma malícia, até. Sorriu. Estávamos juntos.
Deitamo-nos depois e nos
amamos, sem pensar no amanhã.
Era uma sexta feira. Passamos o
final de semana namorando. Nada de assuntos outros.
Fomos a outro médico e a outro.
Tratamentos paliativos, apenas. O diagnóstico estava certo.
Contamos aos
nossos filhos. Não foi fácil! Abraços, choros, ditos de amor, explicações, irritações,
revolta, até.
Por que tanta gente má vive muito e gente que só
faz o bem é escolhida para partir?
A revolta deles não era a da minha
mulher. Ela surpreendia-me pela serenidade.
Nada de brigas com o destino. O
tempo por aqui é limitado. Minha mulher tem muita fé. E tem uma linda
certeza sobre o que virá depois. Eu ora acredito, ora desanimo.
Tentava,
contudo, viver cada momento. Dizia a mim mesmo que não há ninguém com o
poder sobre a vida e a morte. Eu poderia morrer primeiro. Já vi casos assim.
Enquanto um estava aguardando a partida, alertado por alguma enfermidade, o
outro partiu vítima de um entre tantos acidentes que há por aí.
Começamos a namorar mais do que de costume. Resolvemos marcar uma viagem. Só
os dois.
Vez ou outra, ela dizia sobre algum detalhe do tratamento.
Rapidamente. O tempo que tínhamos não poderia ser desperdiçado. Fizemos uma
linda ceia de natal; sem despedidas. Quem sabe o que há de acontecer amanhã?
Comemoramos juntos o ano novo. Ela olhou-me como sempre e brindou as nossas
escolhas de vida. Estávamos em família: filhos, netos. Estávamos apenas
nós. Nossos olhos se entrecruzaram. O mundo poderia terminar ali. No alto,
os fogos explodiam. Barulhos por todo o canto. E estávamos sós.
Nas férias,
resolvemos voltar ao hotel em que fizemos nossa lua de mel. Os momentos de
dor não eram esquecidos, naturalmente. Ela surpreendeu-me algumas vezes com
os olhos marejados. Enxugava-os com cuidado, e me beijava.
Dançamos no quarto, em que pela primeira vez nos amamos. Na época, era
assim. Esperávamos o dia do casamento.
Voltemos ao
hoje!
Trabalho pensando na volta para casa. Compro alguma lembrança para roubar um
sorriso dela. Nem seria necessário, mas me faz bem. Surpreendê-la me faz
bem. Aproveitamos cada feriado. Desde o primeiro diagnóstico, provamos ao
médico que o tempo de vida não se mede em exames.
Lembro-me quando perguntei sobre uma primeira viagem que estávamos
programando. Ela disse, sem rodeios, que era muito tempo. Que eu não me
animasse. Fui forte e desobedeci. E outras viagens se sucederam.
Estamos fazendo planos para a Páscoa.
Que a morte virá não nos restam
dúvidas, para ela e para mim, inclusive. Mas saberá, a morte, que
não
perdemos tempo aguardando a sua chegada. Venha quando tiver de vir. Enquanto
isso, viveremos o tempo do amor. Quantos casais têm essa felicidade?
Naturalmente, a paixão enlouquecida dos primeiros tempos sobreviveu aos
primeiros tempos apenas. Depois, outros sentimentos nos preencheram. O
companheirismo, a cumplicidade, o cuidado mútuo, o amor. Hoje nos amamos. E
como nos amamos! Sei disso porque os melhores momentos da minha vida são os
que eu estou com ela. As minhas vitórias profissionais ganham novo sabor
quando sei que ela está por perto. E as dela, também. Um olhar e adivinhamos
o que o outro sente.
Se brigamos? Sim! Longe de nós a perfeição. Se desejamos nos separar?
Várias vezes, Se olhamos para o lado? Certamente. Quem manda nos desejos?
Mas quando olhamos para nós mesmos, percebemos que era melhor permanecer.
Que decisão acertada!
Talvez viajemos na Páscoa. Praia? Campo? Interior? Capital? Ou talvez
fiquemos em casa? Ainda não decidimos. Decidimos estar juntos. Vivendo
juntos a dor; vivendo juntos o amor.
Também gosto de cozinhar, para ela. Gosto quando ela elogia apenas pelo
cheiro. Antes, inclusive, de provar.
Gosto quando ela me cobre antes de
dormir. E me dá um último beijo.
Não sou dono do amanhã.
Hoje?
Vou surpreender,
mais uma vez,
o meu amor!
Autor:
Gabriel Chalita
Publicado em 25/03/2017
Postado em
04/04/2017
Considerações:
Muita gente só dá valor à saúde quando
prescinde dela.
Pensemos que "O
amanhã só a Deus pertence!".
Que ninguém vá dormir sem estar em paz com
as pessoas que ama e com as pessoas que o/a
amam!
Que ninguém saia do convívio com familiares,
amigos ou colegas de trabalho, sem uma
sincera despedida.
Ninguém garante que se reencontrarão no
expediente seguinte. Sejamos amáveis e
solidários!
Complementado em
04/04/2017